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Para o inferno com as princesas da Disney!

  • Foto do escritor: Mara Vicente
    Mara Vicente
  • 29 de set. de 2019
  • 10 min de leitura


Sou contra as princesas da Disney. Contra! Contra! Contra! Filhas da mãe das perfeitinhas de um raio que me bordaram a ponto cruz na alma toda uma expectativa do que é ser feliz e depois apresentam-me a história da Pocahontas em 1995, quando já era tarde demais para eu perceber que há mulheres completamente independentes e finais a um numa altura em que eu já só lia a Bravo e sonhava com o Luke Perry a piscar-me o olho e a chamar-me baby.

Desde cedo que tinha cristalina a imagem do que significava ser feliz: ter uma família e uma casa só minha com um molho de chaves na mão que faziam de mim She-Ra, a princesa guerreira e dona do Universo!!!!!!! - bem, pelo menos era para aí que o meu cérebro ia quando mais ou menos aos dez anos lidava com a perspetiva de ser mãe e possuir património imobiliário.

Uma casinha pequenina, junto à relva. Porta de madeira ladeada por duas pequenas janelas com portadas sempre abertas e ornamentadas com os mais singelos canteiros floridos. Um alpendre. Uma cadeira de baloiço. Muito específico? Pois a culpa é toda das princesas da Disney! Tenho para comigo que a casinha da Branca de Neve ficou gravada no meu subconsciente como um sítio onde viviam o amor e a amizade incondicionais - e com uma catrefada de amigos solidários com o meu feitio peculiar e o facto de eu ser baixa como o caraças! - pelo que a minha casa dos sonhos alinhava bem com a da Branca de Neve. Em tudo parecida menos no facto de ter telhados de palha. Pá isso não que eu não sou anjinha e também li a história dos três porquinhos, ok?

A casinha da Branca de Neve era paz e amor na minha cabeça. Deve ser dali que me vem este sonho...dali e a da minha avó Rosa. A avó morava numa casinha pequena e modesta, numas águas furtadas construídas de tal forma num terreno inclinado que parecia ser uma casa térrea. Entrávamos no quintal por um portãozinho minúsculo por cima do qual só não saltava quem não queria ou quem fosse pigmeu, - como somos quase todos do lado dos Silvestres. A porta da rua estava sempre aberta com as fitinhas coloridas a servir de fase final dos “Jogos sem fronteiras” para as moscas e mesmo à entrada tinha uma gaiola com um canário Pavarotti todo amarelinho e uns canteiros cheios de flores especiais que só a minha avó sabia fazer florescer - hoje tenho a certeza que lhe devia sangrar o coração de cada vez que eu pedia para colher umas rosas ou uns brincos, mas mesmo assim lá ia ela de navalha na mão cortar as mais bonitas para me ver largar um sorriso.

Dentro de casa não havia muito, mas havia tudo o que era preciso. Uma mesa de cozinha onde se comiam as melhores batatas fritas do mundo (às rodelas ou aos palitos conforme a vontade do freguês) e onde se fazia um chá de limão impróprio para consumo, com mais açúcar que água e limão, mas que eu bebia até ao fim para não fazer desfeita. E um sofá onde nos aninhavamos todos a ver o Natal dos hospitais pela televisão a preto e branco - que por acaso até era verde, fruto de uma tela protetora que o meu tio tinha comprado numa dessas lojas modernaças de aparelhos eletrodomésticos e que era o último grito da moda - e onde se viam sempre todos os programas até ao fim, não por sentido de missão mas por genuína preguiça de levantar para carregar e girar os botõezinhos dos canais. Mal de mim se calhasse de dar o 70x7 num dia de frio depois da minha avó ter acabado de me deixar tipo wrap entalando pacientemente uma mantinha de 10kg por onde quer que pudesse fugir calor. Dependendo de quão bem embrulhada estivesse, ele era o 70x7 e o TV rural… tudo de uma assentada que se estava ali tão bem. E também lá estavam os naperons de renda no sofá, a alcatifa no chão e o quadro do menino da lágrima. No quarto onde eu e o meu irmão dormíamos quando visitávamos a avó havia uma máquina de costura Singer preta, toda em ferro. A minha avó a custo lá nos deixava balançar o pedal da máquina e nós ficávamos ali durante horas a ver aquela roda de ferro a girar à toa e o pedal como que por magia a mexer-se sozinho com todo aquele balanço. Havia quem jogasse Tetris ou Mario Bros… nós tínhamos a Singer da minha avó.

O melhor do quarto era o colchão de palha que nos abraçava. Ai o que eu gostava do colchão de palha, que se moldava a nós e deixava toda uma cova no lugar onde dormíamos! O barulho que fazia é que estava longe de ser o ideal, há que admiti-lo. Aquele shhhhhh-shhhhh-shhhhhh cada vez que mexes um músculo não é amigo de deixar ninguém dormir mas o antídoto vinha novamente em forma de cobertor (camadas e camadas que pesavam tanto que não te deixavam mexer e mal conseguias respirar).

Eu era feliz nas águas furtadas da avó Rosa. Mas ela muitas vezes confessava que gostava de ter uma casinha mais nova, onde o soalho não rangesse e cedesse ao ponto de se evitarem certas zonas da casa e onde a casa de banho fosse muito mais do que uma sanita de barro e um alguidar de plástico.

Eu sonhava com a casinha nova da minha avó. E ela depressa se tornou minha… bom, minha e da Branca de Neve aparentemente.

E lá dentro, achava eu, teria de existir uma lareira. A minha ideia de sucesso era mesmo ter uma lareira! Se eu conseguisse trabalhar o suficiente para uma casa com lareira eu tinha chegado ao topo! Calibrem… até aos meus dois anos vivíamos num casebre sem condições que uns tempos depois de nos mudarmos passou a servir de galinheiro aos moradores da zona. Quando nos instalámos no bairro social com os meus pais e cada um ganhou o seu quarto, o seu lugar à mesa da cozinha e o seu pequeno socalco marcado nos sofás da sala, eu sentia e sabia que estávamos bem melhor na vida, mas continuava a sonhar com um cenário de abraços demorados, chá e torradas em frente a uma lareira a crepitar. E porque os abraços não se dão sozinhos é óbvio que também lá estariam na fotografia o marido, os filhos, o cão a saltitar. Daí que quando ouço os outros falar sobre o ter-se sucesso - o primeiro milhão, os investimentos, as viagens, as roupas, o património - sorrio muitas vezes para comigo e levo a mão à cabeça com a minha velha ideia de sucesso e felicidade, constatando o quão relativo é tudo. E pergunto-me onde foram eles buscar as suas referências? Que contexto lhes transmitiu aquele nível de ambição? Que educação e expectativas lhes permitiram colocar a fasquia por ali? No patamar dos milhões? Teriam eles mais ou menos razão que eu?

Ó pá, o dinheiro não é tudo. Certo. Verdade. Mas lá que ajuda, ajuda. Confirmo, subscrevo. É minha convicção que o dinheiro não nos traz felicidade mas dá-nos a disponibilidade emocional para apostarmos em ser felizes. Se o nosso único pensamento for: “como é que eu pago a quem devo?” é justo dizer que não sobra muito mais espaço para pensarmos no que realmente nos fará felizes. Ainda assim é bom reforçar desde já que o dinheiro assim, direto, diretinho, não dá felicidade a ninguém. Porque não há fórmula única para a felicidade e se para uns pode ser andar de mochila às costas pelo mundo a viajar, a tirar selfies, a apanhar escaldões e gastroenterites virais a torto e a direito, para outros pode estar nas conversas simples e despreocupadas com os amigos ou no olhar apaixonado da sua cara-metade. E ceeeeerto, dever dinheiro nunca deu amigos a ninguém e não se atraem moscas com vinagre, por isso um banho de loja nunca fez mal a ninguém. Estamos de acordo: dinheiro não traz felicidade, mas que dá um valente pontapé de saída, ao nível daquele que o Marco deu à Sónia no primeiro Big Brother que a tipa até se bandeou da cadeira abaixo, lá isso dá.

Mas voltemos à minha contenda com as Princesas da Disney. Essas escanzeladas que não só me incutiram a ideia da casinha mixuruca como de todo um quadrinho rupestre de felicidade, decorado com uma música lamechas do Leonard Cohen, acompanhada de um primeiro beijo emoldurado com um pôr-do-sol ao fundo, um joelho encostado ao chão, um anel cheio de bling e um pedido de casamento. Mínimos olímpicos! Daria igualmente direito a um grandioso vestido de cetim e renda, comprido e cheio de roda, branco branquinho de fazer inveja aos anúncios do “Omo lava mais branco” e para fazer o pleno ao nível do brega, teria também umas gloriosas mangas de balão - isto claramente culpa de todos os roteiristas e figurinistas da Disney que só estão bem a casar a malta e a desenhar mangas de balão, ele é a Branca de Neve , a Cinderela, a Ariel… e o facto é que eu nunca vi ninguém a aguentar umas mangas de balão na vida real (o sonho arruinou-se definitivamente quando vi a princesa Diana a chegar à catedral, sair do carro e ser parcialmente engolida por um vestido de noiva cujas mangas de balão pareciam alimentadas a ar quente e onde pior que as mangas de balão só mesmo o bouquet da senhora, cuja extensão floral dava para forrar toda a capela da minha terra e ainda tinham de deixar de fora dois ou três miosótis!

Há aqui um tema com as princesas em geral, há… e com as da Disney em particular. Porque ao menos com as princesas reais sempre há o facto da Diana ter sido traída com uma cota, da Stephanie colecionar maridos, com o último a trabalhar no circo e da Meghan ter engordado para aí uns 30 Kgs depois de dar à luz. Estas sempre nos dão um cheirinho de realidade e uma réstia de esperança. Já as da Disney acabam todas a morar num palácio, lindas e maravilhosas, casadas com o seu herói e (preparem-se para o embate, que vem aí um remate de peso), felizes para sempre!

Felizes para sempre, meu povo!!! FELIZES-PARA-SEMPRE !!!! Para tudo!!! Se isto não é criar a expectativa mais irrealista da vida, eu não sei o que é! É como dizer aos jogadores do Paços de Ferreira que “este ano o campeonato é nosso, putos” só porque jogam à bola e constroem móveis mais maciços que os do IKEA… ou dizer à Lili Caneças que pode parar de fazer plásticas que aquilo agora é que vai aguentar firme ou obrigar alguém a vestir um cinto de explosivos, dar-lhe um bilhete de avião só de ida e dizer-lhe que grite “morte aos infiéis” quando chegar ao controlo de segurança que vai ver que vai ser suuuuuuper engraçado! É irreal e cruel. É lançar-nos para o fracasso desde a partida. Conseguem imaginar quão lixada eu fiquei com as princesas da Disney quando o meu primeiro beijo foi com um puto que se concentrou a imitar o que via nas novelas da Globo (as piorzinhas, aquelas das seis da tarde) e esteve uns quatro minutos inclinado sobre o seu lado esquerdo de boca aberta e olhinhos fechados a exercer a arte do beijo sem mais nenhum movimento? Foi inesquecível. Até porque ninguém esquece a sensação de beijar um salmão acabado de pescar. Conseguem imaginar a irritação quando percebi que alguns príncipes afinal só queriam meter a mão nas joias da família e que o primeiro afinal não seria o último? Estas coisas teimavam em acontecer e eu questionava-me se o argumentista da minha vida tinha saído para comprar cigarros para nunca mais voltar e alguém passou o comando para o tipo que só tinha entrado no estúdio para pedir autógrafos.

Ainda assim, segui em frente. Afinal de contas ainda agora tinha arrancado a vindima, não se via ninguém a lavar cestos e as princesas também passaram por muito até para aí aos 50 minutos de filme. E assim de repente dei por mim irremediavelmente apaixonada enquanto almoçava num micro café sem extração de fumos nem janelas, localizado na subcave do igualmente inestético edifício de escritórios onde trabalhávamos. Atos de bravura? Épicas demonstrações públicas de amor? Cavalos brancos e torres altas? Nada. As suas armas de eleição foram um par de olhinhos tristes, um sentido de humor irrepreensível e o dom de saber dançar kizomba. Declarou querer casar em frente à consultora imobiliária enquanto negociávamos a melhor maneira de mudar de casa. Marquei o casamento no guichê dos divórcios enquanto chorava a rir com as suas piadas sobre eu ser uma imigrante ilegal e  ele me estar a salvar de uma vida de prostituição. Casei-me num dia de semana, de sandálias de cunha e calças de ganga, mas feliz como se estivesse enfiada numas mangas de balão do tamanho do Hindenburg. Aquele era o meu “felizes para sempre”. O guião era bem fraquinho, há que admiti-lo, mas ainda assim o puto dos autógrafos até se estava a safar bem. Podia ter-lhe dado para pior - e há pior, que todos fomos obrigados a ler os Maias e o Amor de Perdição com os seus incestos, suicícios e confinamento eterno em mosteiros - mas o facto é que nunca houve nenhuma princesa da Disney a avisar-me que as melhores histórias de amor também acabam e que dali por dez anos eu estaria separada com uma filha pequena para criar, um emprego exigente para manter e nenhuma ideia de como seguir em frente.

Não foram as princesas da Disney que me ensinaram a saber estar só com os meus pensamentos, a saborear com gosto uma refeição a um ou a desfrutar de um cinema sem partilhar a decisão do filme ou o tamanho do balde das pipocas. Também não foram elas que me ajudaram a gerir o tempo, a decidir os gastos, a trocar pneus. Não foram princesas, mas rainhas quem me ajudou a seguir em frente. Amigas e confidentes, também elas com o seu próprio argumentista bêbedo mas que ainda assim seguem sem guião fazendo por ser felizes. Foram elas sim. Mas olhem que também me ajuda muito ir ao Ikea de vez em quando e ficar ali a testemunhar os casais a criar rugas de expressão e a gerar micro AVCs enquanto se debatem violentamente sobre o quão crítico é que a MALM de 6 gavetas para o quarto do mais novo tenha de ser preta-castanha ou de como o colchão viscoelástico de 160cm jamais irá caber na curva entre a escada de serviço e a porta.

Não foram as princesas da Disney que me deram força para explicar à minha filha como uma família pode seguir existindo para além da separação. Como um pai e uma mãe serão sempre um pai e uma mãe. Como a vida é um mar de possibilidades e contratempos, mas o que importa é manter a calma, seguir caminhando e acreditar sempre que há melhor adiante. Deve ser um pouco por isso que as personagens que ela mais adora são o Rei leão e o Dumbo com o seu amor incondicional pelos pais.

Para o inferno com as princesas da Disney! A vida vai ter de seguir sem guião, sem exigências nem estereótipos. E vai acabar por se encher de novas experiências e surpresas agradáveis. Que eu agora olho para as princesas e só consigo ver que a Cinderela não sabia correr nem ver horas, a Bela adormecida tinha tudo para ser mãe solteira e viver agarrada às drogas, tal era a sua incapacidade de evitar o risco, além do que subscrevo inteiramente a opinião da Madrasta Má, uma vez que a Branca de Neve nunca poderia ser a mais bela do reino com toda aquela rosácea nas bochechas.

Para o inferno com as princesas da Disney porque os quarenta ainda agora arrancaram e eu cá me encontro, de calças arregaçadas até ao joelho, prontíssima para esmagar uvas e sem qualquer vontade de lavar cestos. E o Ikea estará sempre ali a dez minutos de distância.


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6 Comments


Mara Vicente
Mara Vicente
Oct 27, 2019

Querido Euclides, E de repente fizeste -me lembrar que nem em criança o meu coração era convencional 😊 vou perdoar um bocadinho as princesas porque haverá quem sonhou com elas e acabou vivendo os sonhos. Espero que o adulto que és hoje seja muito feliz. Tu mereces. Beijos, Mara

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euclides.cabral
Oct 27, 2019

Querida Mara,

Coitadas das princesas, elas não o fazem por mal. Só querem fazer as crianças sonhar.

Seriam as crianças felizes se soubessem com é vida de adulto? Eu carreguei comigo o sonho de ser um super homem, um índio a combater os cowboys ou um navegador a combater os piratas. Apesar disso, não deixei de voltar à realidade e viver as dificuldades que me rodeavam. Cresci com uma meia dose de realismo e ilusão. Fui feliz, infeliz e pelo meio sobrevivendo. Desde o dia que me deixei de abater pelas coisas tristes e procurar a felicidade, vivo melhor comigo. Existem muitas coisas e pessoas que nos fazem sentir bem.

Obrigado por me lembrares dos meus sonhos de infância.

Beijos,

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Mara Vicente
Mara Vicente
Oct 02, 2019

Que rica ideia! E que rico comentário 😊❤️ e olha que o morcão da moça era uma jóia, que ela andou o filme todo com uma valente tpm! 😂

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raffaela.designer
Oct 02, 2019

😂 Muito bom! Mas se não quiseres ir ao IKEA, vê os filmes das novas princesas da Disney (que eles tb já perceberam que não fazia sentido continuarem a injetar esses idílicos nas pessoas).

Olha o exemplo da nossa amiga Ana do Frozen! Foi enganada pelo belo príncipe, levantou a saia e continuou a vindimar, encontrou um morcão q é fofinho à maneira dele! Vão ser felizes p sempre? Se calhar não que as contas do palácio não se pagam a vender gelo. Ela vai ter q o sustentar e diz a estatística q isso continua a não ser muito atraente... Mas pronto! Têm dias (como nós), pra sempre, talvez... tá a sair o Frozen 2. Temos q ver ;)

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Mara Vicente
Mara Vicente
Sep 30, 2019

Despertaste o monstro agora atura e lê 😘😘

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