top of page

Sobre ter 40 e ser 40

  • Foto do escritor: Mara Vicente
    Mara Vicente
  • 5 de set. de 2019
  • 6 min de leitura

Atualizado: 7 de set. de 2019


“A velhice é sempre dez anos mais velha que eu.”

John Burroughs


Desço o elevador do hotel mesmo no coração de Nova Iorque e vou cheia de planos na minha cabeça. Um par de horas para aproveitar e muito que ver. Trago as minhas leggings, os ténis mais confortáveis que possuo, uma t-shirt toda modernaça, cabelo solto e muita vontade de sair por aí a andar só para sentir a cidade a pulsar.

Rio sozinha quando penso que nunca nos meus sonhos mais recônditos eu me veria aos quarenta e um sozinha, entregue a mim, a palmilhar Nova Iorque e a sentir que estou a vencer na vida.

No elevador vão uns quatro miúdos (nos vintes, miúdos portanto…) também eles cheios de planos e excitação. Parecem não me ver. Que os miúdos nesta idade não se misturam, verdade? Vivem à parte, lá no seu mundo de pele sem estrias e cabelos cheios de keratina e elasticidade. Só lhes levo vantagem pelo facto de já não precisar de Clearasil. Sim, que isto da idade bué adulta também tem os seus trunfos! E estes mesmos miúdos também têm o dom de muitas vezes não serem vistos. São meio que transparentes para as gerações mais velhas, desconsiderados para tudo o que importa decidir, sem voz nem razão. Não se lhes dá muita importância porque os cotas acham que “...convenhamos, esses fedelhos já se acham por demais importantes, com os seus I-pods e I-phones e I-quero, posso e mando...”.

Mas hoje, da maneira como me sinto e como nos comportamos, somos todos iguais naquele elevador. Não me sinto nem um dia mais velha que nenhum deles! Caramba, sinto-me mesmo viva!

O elevador abre-se. Um segundo de silêncio, um “plim”. Alguém lá fora, nos seus sessenta anos, bolsa à cintura e chapéu de palha ao lado olha para dentro do elevador como a ver se é seguro entrar. Um segundo de silêncio, um “plim” e ouço um valente: “Morning Madam!”

Os miúdos? In-vi-sí-veis. Eu? Todo um farol aceso dentro daquele elevador cheio de gente.

Ena! Como aquele “Madam” foi direto ao meu coração tipo bala, mas daquelas que entram direitinhas e estilhaçam tudo lá por dentro.

Há desde sempre uma distância entre quem consideramos ser e a forma como somos percebidos. Dentro daquele elevador havia todo um Grand Canyon entre a miúda fresca que eu sentia ser e a senhora que aquele tipo viu.


A verdade é que foi ontem. Foi ontem que fui nova com “N”. Pernas a tremer e uma mala de tal forma carregada que me vergava como se andasse a apanhar lenha para o Inverno Russo. Lá fui eu, ontem, ladeira abaixo até à escola pela primeira vez. E como eu queria entender aqueles códigos pequeninos e entrelaçados que enchiam milhares de folhas das dezenas de livros novinhos que a minha mãe comprava todos os meses no Círculo dos Leitores e exibia orgulhosamente na sala de estar como se ali se guardasse todo o conhecimento do mundo. Eu achava mesmo que sim. Ainda por cima tinham capa rígida e letras douradas. Na minha cabeça estavam 25 bíblias na minha sala e eu TINHA DE SABER o que lá dizia. Mais tarde percebi que entre o D.Quixote, o Monte dos Vendavais e os não sei quantos volumes do Ivan o Terrível, aqueles livros só me ajudaram a ver que ninguém é perfeito e há vidas mais difíceis.

Havia tanta coisa que eu não entendia, mas tanta vontade de aprender! Queria saber tudo, fazer tudo, não via limites em nada. O auge do dia era sair a correr para o recreio e ser a primeira a escorregar pelos trilhos que fazíamos com um saco de plástico - ou não - sem dó nem piedade pelas calças de ganga e saias de sarja e descíamos aquelas mini ravinas de terra ou lamaçal, dependendo da estação do ano, que circundavam os muros da minha escola. O saldo era quase sempre um joelho esfolado e uma mão cheia de felicidade! Daquela pura, cristalina, da que nos faz rir sem sentido. A genuína, que passamos a vida toda a tentar repetir por essas feiras populares a fora… É que, uau, eu ali era feliz!


Foi mesmo ontem que eu guardei aquela última boneca, a preferida. A que na verdade não queria mesmo nada guardar mas que na minha cabeça me impedia de ser mais crescida. Foi ali que comecei a misturar a criança que fui e o adulto que viria a ser. Era tudo e coisa nenhuma. Claramente a idade em que se sabe que já se perdeu a piada toda quando pedimos qualquer coisa à nossa mãe com aquela voz pequenina, cabeça ao lado e olhos de gato das botas (aquela, que funcionava que nem ginjas há uns mesitos atrás) e recebemos de volta um “Mau, não tenho paciência para essas criancices, que já não és bebé nenhuma! Diz lá o que queres como deve ser!”

O chato é que já não se é bebé, mas também ainda não se ganharam as curvas. Então compensa-se com 50 kgs de atitude, toda ela uma colagem do colega mais bazófia da escola, com a tipa mais arisca lá do bairro e a personagem favorita dos filmes de ação que passavam na altura - sim, era mesmo isso, ora oscilava entre um Chuck Norris de parcas palavras ou um Van Damme cheio de bazófia e emoções, conforme os dias. E sim, estava em boas condições para me fecharem num armário a marinar até aí aos 20.


Foi também ontem que o coração parou pela primeira vez e não sabendo muito bem explicar porquê não deixava de pensar naquele miúdo que me olhou uma vez, de relance - se calhar nem foi para mim que havia todo um cartaz da Samantha Fox mesmo atrás de mim - e que, portanto, nem devia saber que eu existia. Foi ontem que o coração aprendeu que tem não sei quantos ritmos, que consegue parar com um olhar, bater descompassado com uma conversa e também se parte. Estilhaça e corta, que parece nunca mais ter remédio. Mas estranhamente continua a bater. Sim, as paixonetas dão cabo do coração. Mas há que assumi-lo: nada, mas mesmo nada, - tipo nem que venha lá o Brad Pitt dos tempos do “lendas de paixão”, cabelo comprido ao vento, todo nu, em cima de um cavalo - nos faz estraçalhar o coração como aquelas célebres palavras de mãe, ditas entre dentes: “Mara Rita, a gente quando chegar a casa conversa”.


Ó pá, a sério que foi ontem. Que saí finalmente do liceu. Que pisei uma faculdade pela primeira vez. Que me vi a receber o meu primeiro ordenado com o que comprei as minhas primeiras calças de ganga da Levi’s (aquele momento épico, a morder o lábio, a contar as notas, que este trapo é tão caro e este dinheiro custou tanto a juntar...). Foi ainda ontem que assinei a escritura da minha primeira casa, rapidamente forrada de bibelots, coca-cola, batatas fritas e dois gatinhos vadios. Foi ontem que fiz planos de vida com alguém, que casei, que tive uma filha - e a partir daí, daquele precioso momento em que ma colocaram nos braços e troquei um olhar com aquela criatura miudinha e frágil, que eu agarrei firme no volante, meti a quinta, pisquei os olhos duas vezes e de repente aqui me encontro.


Carrego o mesmo coração curioso, a mesma vontade de ser feliz, a mesma energia para a vida. O chato é quando às vezes paro diante do espelho e preciso de uns momentos para reconhecer aquela mulher cheia de olheiras, de maxilar mais quadrado e ancas largas que tem de tomar coragem para subir um lance de escadas e já não vai a pé a lado nenhum. E que de vez em quando, quando falo parece que estou a ouvir a minha mãe projetada de dentro de mim.

Aquele “Madam” teve um efeito de espelho aumentador. Sacana do tipo que me atirou o ego para o poço do elevador! Mas sabem que mais? Fiz o que faço melhor: pus o meu sorriso 35 e saí dali cheia de confiança, nariz empinado e ancas a oscilar , qual Irina Shayk a seguir ao primeiro piropo do Bradley Cooper. Porque os anos eu tenho, mas a velhice só chega quando eu deixar!


Nota de rodapé: estava tão confiançuda que galguei uns quarteirões e ainda subi os últimos sete lances do Empire State Building a pé. Chegada ao topo, acho prudente refazer a minha última frase: Os anos eu tenho, mas a velhice só chega quando os joelhos cederem! Pronto, é mais isso.



6 Comments


elizabete.serra1949
Sep 11, 2019

Adorei o que li

é tão bom ser livre como mulher

E na escrita viver cada minuto

Como se fosse o último bjk


Like

susanaparedesvenancio
Sep 10, 2019

Tão bom!!!

Continua!!!

Adorei ❤

Like

s.ana.raquel
Sep 08, 2019

Fantástico Mara Rita❤️. Mesmo!!!!!

Like

catarina.rodrigues
Sep 07, 2019

Adorei!!! É uma porra isto de nos chamarem de Madame ou acharem que já não temos idade para ficar no escuro a esperar que um desconhecido passe para o assustar de morte :) .

Like

lucia.cardante
Sep 07, 2019

🙌❤️❤️

Like

©2019 por De aqui em diante. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page