Falhar não é fatal
- Mara Vicente
- 23 de fev. de 2021
- 7 min de leitura

É tramado... sou uma romântica incurável.
Achava eu que os anos me iriam agudizar o pragmatismo e tornar um pouco mais cínica e céptica. Com uma mão cheia de tentativas-erro, alguns castelos no ar e um divórcio lá pelo meio, seria de esperar que as cicatrizes me endurecessem a pele. A verdade é que continuo a não resistir a um silêncio cúmplice, um sorriso rasgado, uma boa conversa, seguidos de uns quantos momentos dignos de partilhar ao mundo com a Sade em musica de fundo.
Sou assim na vida: no amor como no trabalho - se é para ser que seja em tudo, não é verdade? - quando me entrego ao trabalho, entrego-me de corpo e alma. Dou tudo por tudo. Acredito indiscutivelmente na empresa, nos processos, nas pessoas. Acredito que vai ser lindo e vai ser para a vida.
É tramado... porque o amor eterno é joia rara e a desilusão nem sempre entra nas nossas vidas pela porta da frente. Não é direto que nos apercebamos que afinal não vai dar. Às vezes a coisa vem assim de mansinho. Uma comichãozita pequenita mesmo a meio das costas que achamos que vai passar se sacudirmos a blusa, depois se estalarmos as costas e que quando damos conta estamos fora de nós a esfregar as vertebras violentamente contra uma aduela e a deixar lá todo o bronzeado conquistado no ultimo verão. Vai escalando. Dá-nos pequenos sinais aqui e ali. Fazemos por não nos distrair com eles, mas ficam ali a acumular no disco rígido (que uma mulher releva mas não esquece).
O limite. Esse sacana que aparece sem se fazer anunciar e não tem dó nem piedade a cortar o teu barato. Faz visitas ligeirinhas, curtas e grossas, irritantes, mesmo em jeito de desafio, como aquela segunda esposa do teu tio Bernardo que aparece sempre lá em casa sem avisar, toda ela muito magrinha, a olhar por cima de ti, pochete encaixada como se tivesse nascido colada à axila da senhora e que se senta assim ligeiramente de lado, meio a desafiar a gravidade, toda assente numa só nádega na pontinha do teu sofá (nunca vais perceber muito bem se tem nojo do sofá ou uma valente crise de hemorróidas) e ali fica, vinte minutos a meia a hora de cada vez, a fumar dentro da tua sala, com o mindinho empinado na chávena do chá, a criticar o tempo, a dificuldade em estacionar, o ressonar do teu tio ou a tua fraca escolha de cor de paredes em especifico e homens no geral. Sai tão ligeira como chegou mas deixa sempre para trás um borrão de cinza, uma beata mal apagada ou o cheiro entranhado a bolas de naftalina. Nas primeiras visitas sorris a tudo e finges que não percebes as indiretas. Gradualmente vais levantando cada vez mais a sobrancelha, o olho esquerdo acompanha e vai tremendo sem controle, o fumo já te perturba até a alma mas tu sempre firme, positiva e agradável, respirando fundo e fazendo por lidar.
É aqui que a história se desdobra em mil possibilidades, dependendo do nosso feitio, estado de espírito e/ou medicação em curso. Não somos todos feitos da mesma massa e lidamos com a frustração, as expectativas falhadas e o desalento de formas diferentes. Há quem sorria e engula fumo a vida toda, porque "diz que há tias piores por aí, esta ao menos visita". Há os que subtilmente se vão esquecendo de atender telefonemas, de enviar convites para batizados e casamentos e finalmente de avisar quando se mudam para outro distrito. Há os que enfrentam a situação com astucia, explicando ao tio que será sempre muito bem vindo lá em casa e que terá sempre a sua sobremesa preferida à espera, desde que não traga a esposa. E por fim os que aguentam, aguentam, aguentam que nem mártires até que sem que ninguém esteja à espera (nem eles!) durante uma qualquer visita, no meio da conversa mais banal, agarram a fininha pelo braço, encostam-lhe o nariz ao ouvido e sibilam: "Vais agarrar na puta da pochete, levantar essa meia nádega do meu sofá e zarpar daqui antes que eu te mostre como se pinta uma parede de vermelho."
Aos 42 tenho a sorte de já conseguir reconhecer rapidamente o significado de uma sobrancelha levantada. E também já sei que depois de um olho a tremer forte, se não resolvo o que me consome, depressa me transformo na Linda Blair a descer a escadaria da casa da mãe em camisa de noite, a fazer a ponte, a dizer obscenidades e a vomitar bilis.
Se por um lado é uma sorte sabermos ler os sinais do nosso corpo, por outro também pode ser uma maldição. Porque nos faz antecipar cenários mais negros que poderiam até nunca acontecer. Para evitar falhar, não nos permitimos arriscar muito.
Para os românticos, a ignorância é uma benção! Vamos la la la pela floresta, a beber cada momento com toda a intensidade, a gravar cada mostra de amor com ferro em brasa no peito. Mas toda a gente sabe o que acontece quando no fim se quer remover o "Ricardo, meu docinho de leite" tatuado às 4 da manhã depois de uma saída com os amigos errados, 5 copos de cuba libre e um desmaio ... dói com'ó caraças!
No trabalho não é muito diferente. Entramos com o sentido de missão e o espírito de equipa em altas, exibimos com orgulho a t-shirt da empresa, as festas aos nossos olhos são todas épicas, os discursos inspiradores, fazemos horas extra sem sequer darmos conta, gerimos as nossas pessoas como muito nossas e de mais ninguém. Mas com o tempo percebemos que nem sempre estaremos no nosso melhor e que até no melhor muitas vezes nos calcam. Que as melhores pessoas também nos falham, os grandes lideres também têm as suas fragilidades, os processos não são todos à prova de bala e não faltam por aí chico-espertos a rodear. Se não te focas no positivo, no que tens por construir e conquistar, quando dás por ti já nem te reconheces como profissional, já reviras os olhos aos hoteis de 5 estrelas, bocejas a meio do melhor discurso, desafias a autoridade a toda a hora e tornas-te um velho do Restelo. Aqui também há os tais múltiplos caminhos: podes ser um velho do Restelo resignado, encalhado e toxico. Podes, em alternativa, abandonar o navio em busca de águas mais calmas, ventos de feição e barcos mais robustos. Ou podes acreditar que consegues ser uma alavanca de mudança, focar no futuro e seguir levando pela positiva, mesmo que discordes com muita coisa. Mesmo que te resignes com alguma imperfeição.
Não há soluções perfeitas nem muito menos únicas, mas fica-me uma certeza: o que custa mesmo é lidar com o fim de qualquer coisa. O fim de um relacionamento amoroso ou de uma relação laboral é sempre em primeira instância a admissão de um ato falhado.
Porque é que custa tanto afastarmo-nos de uma relação que não está a resultar?
Talvez porque não sabemos como lidar com tantos dias de caminhada em conjunto que agora teremos de fazer por seguir a solo. Porque não conseguimos sequer calcular o retorno do tanto de nós investido, moldado, cedido. E que já não julgamos recuperável para mais ninguém. Porque no final falhámos. Demos tudo e falhámos. Como é que vamos encontrar força e vontade para tentar de novo? E se voltamos a falhar? É este o sentimento mais terrível de sacudir.
Ainda me é difícil fazer as pazes com o acto de tentar e falhar. Talvez precise de mais uns anos para conseguir a clarividência de encarar o falhanço de frente e com um sorriso nos lábios. Ficar feliz pelo bonito que foi viver um capítulo novo e encarar o seu fim como uma lição para o melhor que vem à frente. Por agora ainda preciso de passar pelas fases todas do luto, ainda me perco nos porquês, ainda raspo as mágoas a decapante e espátula e ainda dou graças por ser difícil o uso e porte de arma em Portugal e eu não saber onde deitar as mãos a uma catana.
E o pior é que no meu caso o ato de falhar é todo meu. Que eu não creio em Deus, logo não posso usar expressões como: "Deus escreve direito por linhas tortas", "Só Deus sabe" ou "Deus no comando". Não pá... Mara Rita no comando. Se fui ladeira abaixo, a bater ora no banco ora no tejadilho, sem travões nem direção, foi mesmo porque sou uma romântica e muito provavelmente meti uma abaixo na hora errada.
Por isso tudo e mais ainda, custa-me imenso um ato falhado. No amor ou no trabalho.
Mas a vida também já me ensinou que é a forma como lido com o falhanço que me faz seguir na vida como uma pessoa de bem. Que não é bom plantar ressentimento no coração. Quando se assume o fim, não precisa vir carregado de ressabiamento e negatividade. Não precisas pagar dor com dor. É bom deixar uma pegada positiva pelos sítios e corações com que nos cruzamos na vida. Porque assim inspiramo-nos a tratar o próximo com respeito e gentileza, sempre.
E a vida também ainda não foi capaz de me convencer a deixar o coração completamente trancado. Porque quem sabe assim não perderia a oportunidade de viver uma cena hollywoodesca, à la Tom Cruise a suplicar a mulher de volta no Jerry Maguire ou à la Richard Gere, de rosa na boca e chapéu de chuva em riste a mostrar à Julia Roberts que ela afinal é uma prostituta para casar... sim, porque um ato falhado pode sempre ser resgatado com uma profunda demonstração de amor. Ou não fosse eu uma romântica.
E se o fim for fim, sem rodeios nem resgate, lembrai-vos, corações tenrinhos, das sabias palavras de Churchill:
"Success is not final, failure is not fatal: it is the courage to continue that counts."
Aprovado. Gosto da tua prosa. Gostava de ver um projecto de longa duração, tipo NaNoWriMo? 😉
Existem pessoas especiais.... e depois existes tu! Esse romantismo que te acompanha pela vida, seja em relações amorosas ou no trabalho é o q faz de ti a pessoa especial que és! E sim... eu a acredito que é o caminho para se ser feliz! Viver intensamente porque vida há só uma, e não podemos viver pela metade, nem sentir pela metade. Adoro-te e cá estarei a “fazer filmes a cavalo pela lezíria” sempre!